segunda-feira, 24 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRÂMANE (HISTOIRE D'UN BON BRAMIN)

esse é um conto do Voltaire que eu queria reproduzir há muito tempo. bom, here it is :

História de um Brâmane apareceu em 1761 na Seconde Suite des Mélanges de Littérature, d'histoire et de Philosophie, com a qual se completam as obras de Voltaire na edição Cramer, de Genebra. Fora entretanto escrita em 1759, porquanto em outubro desse ano Voltaire a enviava à sua amiga, Mme. du Deffand. A moral da parábola, pois é mais uma parábola ou um apólogo do que um conto, está na carta que acompanhou a remessa: "Exorto-vos a gozar, quando puderes, essa vida que é bem pouco, sem temerdes a morte que nada é".
A personagem do brâmane é um dos heróis preferidos das facécias, dos diálogos e dos panfletos de Voltaire. Encontramo-lo até no Dicionário Filosófico. Quanto ao processo de oposição, no caso o do sábio à pobre velha, é igualmente comum em Voltaire. Foi, de resto, graças a esses contrastes que o escritor conseguiu desmoralizar a especulação metafísica.
S.M.*

Encontrei nas minhas viagens um velho brâmane, homem bastante sábio, cheio de espírito e de erudição; de resto, era rico, e por isso mesmo ainda mais sábio; pois como nada lhe faltasse, não tinha necessidade de enganar a ninguém. Seu lar era muito bem governado por três belas mulheres que porfiavam em agradar-lhe; e, quando não se divertia com elas, ocupava-se em filosofar.
Perto da sua casa, que era bonita, bem ornamentada e cercada de encantadores jardins, morava uma velha hindu, carola, imbecil e muito pobre.
- Quem me dera não ter nascido! - disse-me um dia o brâmane. Perguntei-lhe por quê. - Há quarenta anos que estudo - respondeu-me -, e são quarenta anos perdidos: ensino aos outros, e ignoro tudo; esse estado me enche a alma de tal humilhação e desgosto, que me torna a vida insuportável. Nasci, vivo no tempo, e não sei o que é o tempo; acho-me num ponto entre duas eternidades, como dizem os nossos sábios, e não tenho a mínima ideia da eternidade. Sou composto de matéria, penso, e nunca pude saber por que coisa é produzido o pensamento; ignoro se o meu entendimento é em mim uma faculdade, como a de marchar, de digerir, e se penso com a minha cabeça como seguro com as minhas mãos. Não só o princípio do meu pensamento me é desconhecido, mas também o princípio de meus movimentos: não sei por que existo. No entanto, cada dia me fazem perguntas sobre todos esses pontos; é preciso responder; nada tenho que preste para lhes comunicar; falo bastante, e fico confuso e envergonhado de mim mesmo após haver falado. O pior é quando me perguntam se Brama foi produzido por Vishnu, o se ambos são eternos. Deus é testemunha de que nada sei a respeito, o que bem se vê pelas minhas respostas. "Ah ! meu reverendo", imploram-me, "dizei-me como é que o mal inunda toda a terra." Sinto-me nas mesmas dificuldades que aqueles que me fazem tal pergunta: digo-lhes algumas vezes que tudo vai o melhor possível; mas aqueles que ficaram arruinados ou mutilados na guerra não acreditam nisso, nem eu tampouco; retiro-me acabrunhado da sua curiosidade e da minha ignorância. Vou consultar nossos antigos livros, e estes duplicam as minhas trevas. Vou consultar meus companheiros: respondem-me uns que o essencial é gozar a vida e zombar dos homens; outros julgam saber alguma coisa, e perdem-se em divagações; tudo concorre para aumentar o doloroso sentimento que me domina. Sinto-me às vezes à borda do desespero, quando penso que, após todas as minhas pesquisas, não sei nem de onde venho, nem o que sou, nem para onde vou, nem o que me tornarei.
O estado desse homem me causou verdadeira pena: ninguém tinha mais senso e boa fé. Compreendi que, quanto mais luzes havia no seu entendimento e mais sensibilidade no seu coração, mais infeliz era ele.
Vi no mesmo dia a velha sua vizinha: perguntei-lhe se alguma vez se afligira por saber como era a sua alma. Nem chegou a entender a minha pergunta: nunca na sua vida refletira um momento sobre um só dos pontos que atormentavam o brâmane; acreditava de todo o coração nas metamorfoses de Vishnu e, desde que algumas vezes pudesse conseguir água do Ganges para se lavar, julgava-se a mais feliz das mulheres.
Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, voltei a meu filósofo e disse-lhe:
- Não te envergonhas de ser infeliz, quando mora à tua porta um velho autômato que não pensa em nada e vive contente?
- Tens razão - respondeu-me ele; - mil vezes disse comigo que seria feliz se fosse tão tolo quanto a minha vizinha, e no entanto não desejaria tal felicidade.
Essa resposta causou-me maior impressão que tudo o mais; consultei minha consciência e vi que na verdade também não desejaria ser feliz na condição de ser imbecil.
Expus a questão a filósofos, e eles foram da minha opinião: "No entanto", dizia eu, "há uma contradição nessa terrível maneira de pensar." Pois do que se trata, afinal? De ser feliz. Que importa, pois, ter espírito ou ser tolo? Mais ainda: aqueles que estão contentes consigo estão bem certos de estar contentes; mas aqueles que raciocinam não se acham tão certos de bem raciocinar. "É claro", dizia eu, "que se deveria preferir não ter senso comum, uma vez que este contribua, o mínimo que seja, para o nosso mal-estar." Todos foram de minha opinião, e todavia não encontrei ninguém que quisesse aceitar o pacto de ser imbecil para andar contente. Donde concluí que, se muito nos importamos com a ventura, mais ainda nos importamos com a razão.
Mas, refletindo bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade. Como se explica, pois, tal contradição? Como todas as outras. Aí há muito de que falar.

* Sérgio Milliet